domingo, 22 de março de 2009
Simples assim...
Sobre as influências da televisão
Autor: FERNANDO SAVATER
“A revolução que a televisão causa na família, principalmente por sua influência sobre as crianças, nada tem a ver, segundo o sociólogo americano Neil Postman, com a sabida perversidade de seus conteúdos, mas provém de sua eficácia como instrumento de comunicação de conhecimentos. O problema não reside no fato de a televisão não educar suficientemente, mas no fato de educar demais e com força irresistível; o mau não é a televisão transmitir falsas mitologias e outros embustes, mas é ela desmistificar vigorosamente e dissipar sem contemplações as névoas cautelares da ignorância que costumam envolver as crianças para que continuem sendo crianças.
Durante séculos, a infância manteve-se num limbo à parte do qual as crianças só iam saindo gradualmente, de acordo com a vontade pedagógica dos adultos. As duas principais fontes de informação eram, por um lado, os livros, que exigiam um longo aprendizado para serem decifrados e compreendidos, e, por outro, as lições orais de pais e professores, sabiamente dosadas. Os modelos de comportamento e de interpretação do mundo que se ofereciam à criança não podiam ser escolhidos voluntariamente nem rejeitados, porque careciam de alternativa. Só depois de chegarem a uma certa maturidade e de se curar da infância os neófitos iam se inteirando de que havia mais coisas no céu e na terra do que até então lhes tinha sido permitido conhecer. Quando a informação revelava as alternativas possíveis aos dogmas familiares, dando lugar às angustiantes incertezas da escolha, a pessoa estava suficientemente formada para suportar melhor ou pior a perplexidade.
Mas a televisão acabou com esse desvendamento progressivo das realidades ferozes e intensas da vida humana. As verdades da carne (o sexo, a procriação, as doenças, a morte...) e as verdades da força (a violência, a guerra, o dinheiro, a ambição e a incompetência dos príncipes desse mundo...) antes eram escondidas dos olhares infantis, cobertas com um véu de recato ou vergonha que só se levantava pouco a pouco. A identidade infantil ( a mal denominada “inocência” das crianças) consistia em ignorar essas coisas ou em lidar apenas com fábulas a respeito delas, aos passo que os adultos caracterizavam-se justamente por possuir e administrar tantos segredos. A criança crescia numa obscuridade aconchegante, levemente intrigada por esses temas sobre os quais ainda não lhes davam respostas completas, admirando com inveja a sabedoria dos adultos e desejosa de crescer para ser digna de compartilhá-la.
Mas a televisão rompe esses tabus e, de maneira generosamente desordenada, conta tudo: deixa todos os mistérios com a bunda de fora e, na maioria das vezes, da forma mais literal possível. As crianças vêem na tela cenas de sexo e matanças bélicas, é claro, mas também assistem a agonias em hospitais, ficam sabendo que os políticos mentem e roubam ou que outras pessoas zombam daquilo que seus pais dizem que deve ser venerado. Além disso, para ver televisão não é preciso nenhum aprendizado especializado: acabou-se a trabalhosa barreira que a alfabetização impunha aos conteúdos dos livros. Com algumas sessões diárias de televisão, até mesmo assistindo aos programas menos agressivos e aos comerciais, a criança fica por dentro de tudo o que antes os adultos lhe escondiam, enquanto os próprios adultos vão se infantilizando também diante da “tevê”, na medida em que se torna supérflua a preparação por meio de estudos, antes imprescindível para se conseguirem informações.
A televisão fornece meios de vida, exemplos e contra-exemplos, viola todos os recatos e promove entre as crianças a urgência de escolher que está inscrita na abundância de notícias frequentemente contraditórias. E há mais: a televisão não só opera dentro da família como também emprega os instrumentos de persuasão cálidos e acríticos da educação familiar. ...
Não há nada tão subversivo educacionalmente falando quanto uma televisão: longe de submergir as crianças na ignorância, como acreditam os ingênuos, ela as faz aprender tudo desde o início, sem respeito pelos trâmites pedagógicos. Ah, se pelo menos os pais estivessem junto delas para acompanhá-las e comentar esse impudico bombardeio de informações que tanto acelera sua instrução! No entanto, é próprio da televisão funcionar quando os pais não estão e, muitas vezes, para distrair os filhos do fato de os pais não estarem... ao passo que em outras ocasiões eles estão, mas tão mudos e enlevados diante da tela quanto as próprias crianças.”